"Bandida: A Número Um" ouve a voz do abandono numa história de empoderamento feminino pop e urbana
O testamento de uma mulher que se emancipou na ilegalidade
Que bela surpresa é "Bandida: A Número Um". Mas não deveria ser... Porque o fator surpresa, aqui, está infelizmente ligado a desconfiança com que exibidores, público e até parte da crítica (faço o meu 'mea culpa' aqui) seguem tratando o cinema nacional. Com uma passagem relâmpago pelas salas de cinema, o longa baseado em fatos dirigido por João Wainer tinha potencial para encontrar o grande público. Só que a "engrenagem" não permitiu.
Com lançamento na semana de estreia do fenômeno "Divertida Mente 2", o filme estrelado por Maria Bomani se viu renegado. O que não deixa de ser sintomático. Porque essa é a história de uma mulher criada à margem. Uma filha do abandono. Rebeca, o alter-ego de Raquel de Oliveira, a autora do livro homônimo que serviu como fonte para o filme, experimentou a impotência feminina cedo demais. Largada pela mãe, a menina foi parar nas mãos da avó, uma mulher em dívida com o temido bicheiro Amoroso (Milhem Cortaz). "Vendida" por aquela que a deveria proteger, Rebeca vai parar nas mãos desse homem perigoso. Isso até descobrir no crime organizado uma chance de desafiar a vulnerabilidade num mundo machista.
"Bandida: A Número Um" é um filme simples em sua proposta, mas ao mesmo tempo ousado em suas intenções. Uma obra com um senso de integridade artística muito convicto. A estrutura narrativa não linear típica das cinebiografias ‘true crime’ é enriquecida por uma direção que enxerga a potência visual nessa história de ascensão e vingança contra o sistema. O foco, aqui, não está na exploração da violência enquanto instrumento de choque. O diretor mergulha de cabeça na realidade da Rocinha dos anos 1980 e 1990 disposto a ouvir a voz de uma mulher que foi de vítima à ameaça sem nunca ter o direito a fala.
João Wainer cria então uma estrutura narrativa comercial, o filme é narrado em perspectiva num grande flashback, para acessar a intimidade daquela mulher. Para registrar também a realidade da violência sob a perspectiva feminina num mundo que nunca permitiria que uma jovem chegasse ao poder tão facilmente. O cineasta se livra de uma armadilha perigosa ao nunca se render a exploração da dor de uma comunidade do RJ.
A câmera, aqui, persegue a verdade que os jornais sensacionalistas da época nunca ousaram publicar. João escancara o círculo vicioso da desigualdade social. É conciso, mas nunca superficial ao mostrar como jovens como Rebeca acabaram - e ainda acabam - empurrados para o mundo do crime por uma sociedade que durante muito tempo foi indiferente a realidade deles. "Bandida: A Número Um" é mais "Cidade de Deus" do que "Tropa de Elite". E a influência do longa de Fernando Meirelles é muito evidente aqui.
João assina um filme com um filtro pop potente. Com uma fotografia quente que enxerga a beleza nas raízes daquela comunidade. Com uma montagem que transita com dinamismo entre o ficcional e o documental compensando certas limitações narrativas/orçamentárias com imagens de arquivo que contextualizam tudo. Um filme com textura visual e social. Um filme que - sem julgamentos - se permite reconhecer nas angústias de uma mulher criminalizada por querer ser livre usando as suas armas.
Um sentimento de fúria contra o sistema "enjaulado" na feroz atuação de Maria Bomani. Uma atriz capaz de transitar por todas as nuances da sua personagem - e determinada a humaniza-la a partir disso. A história de ascensão da "bandida" fica em segundo plano quando entendemos que o objetivo do filme é preencher as lacunas que a conduziram até a empolgante cena de abertura. Ali, cercada pela polícia, ao som de Fagner, Rebeca deixa o seu testamento. Ela quer se fazer ouvir. E o filme permite isso. Às vezes até diminuindo a importância de outros elementos decisivos na jornada dela, como o desenvolvimento dos amigos de infância da protagonista.
Por outro lado, João encontra no romance entre Rebeca e Pará (Jean Luis Amorim) a chance de mostrar a ilusão de funcionalidade consumida por um mundo corrupto, desigual e preconceituoso que nunca iria permitir que a relação dos dois existisse longe daquela ambiente. Talvez por isso, o longa se esforce tanto para não reduzi-los a imagem que a mídia acostumou a vender. Por trás das drogas, dos assassinatos e dos fuzis existia uma história de amor. E João se deixa levar por esses sentimentos estilizando a realidade em tons de vermelho.
Uma cor que acompanha a protagonista no amor, na religião e - infelizmente - na violência. Essa foi a realidade de Raquel de Oliveira. "Bandida: A Número Um" se recusa a julgá-la. Não tolera também a ideia de explorar o sofrimento sem um propósito claro. O objetivo era dar voz àquela menina que virou traficante. E a voz dela será ouvida. Se não nos cinemas (como merecido), com toda certeza agora na Netflix.
“Bandida: A Número Um” está disponível na Netflix.
Nota: 7,5/10