"Eles: O Medo" enxerga o horror no trágico produto final do racismo
Os monstros do passado seguem muito vivos...
É impressionante como "Eles: O Medo", a segunda temporada da brutal série "Them", avança no conceito original ao trazer o horror gerado pelo racismo para um contexto bem mais atual (e trágico). Esqueça o terror frontal e desconfortavelmente explícito da temporada anterior. O que vemos aqui é um estudo muito mais complexo sobre o medo gerado por um sistema racista e o impacto disso na identidade da comunidade afro americana. A violência policial, óbvio, é o ponto de partida da série.
Nos EUA dos anos 1990, os ataques brutais daqueles que deveriam servir e proteger criou um cenário de elevada tensão social. Os policiais eram inimigos. Eles eram o braço mais violento de um Estado que seguia perseguindo a comunidade negra - agora sob os olhares atentos da mídia. Contextualmente falando, "Them" é brilhante ao avançar 30 anos no futuro com um olhar atento para os fantasmas do passado. O cenário mudou. A direção de arte capricha ao nos transportar para 1991. Tudo é muito imersivo. Muito habitável. As casas. As ruas. Os espaços. Os anos noventa estão vivos no imaginário do público.
Só que não sob essa perspectiva. Não sob a perspectiva de uma comunidade que, naquele período, ainda seguia lutando para conquistar a sua voz contra a covardia de um sistema racista. "Them" então salta no tempo determinado a enxergar os paralelos entre o passado e o presente. Primeiro de forma sutil. Em "Eles: O Medo", a protagonista é uma mulher negra detetive da polícia. Dawn (vivida pela expressiva Deborah Ayorinde) estava do lado dos poderosos. Ela estava à frente de um caso de homicídio brutal envolvendo a tutora de um lar para crianças adotadas. O mundo parecia diferente. Só parecia…
Não demora muito para o criador da série Little Marvin contestar esse ideal de empoderamento. Logo percebemos que Dawn era a única mulher negra no seu setor. Logo percebemos que ela estava longe de ser 100% respeitada pelos colegas brancos. Logo descobrimos que ela passa longe de representar uma inspiração para a sua comunidade. "Eles: O Medo" começa personificando o horror na figura da polícia, mas indo além disso. Existem algumas sugestões inquietantes.
É interessante que o contraponto a figura de Dawn venha de Edmond, um ator negro com dificuldades para lidar com as seguidas recusas em testes. Se ela estava no topo, ele estava na base de uma pirâmide injusta. E "Eles: O Medo" fisga ao desenvolver a relação entre esses personagens. Tudo o que diz respeito ao personagem de Luke James é sinistro por natureza. Existe uma raiva reprimida nele que conduz o personagem a uma zona instável naturalmente inquietante. É fácil reconhecer as angústias deles. O difícil é entender as raízes delas.
E é aqui que "Eles: O Medo" supera a temporada original ao enxergar na relação entre causa e consequência a chance de repercutir os ecos do racismo da identidade de um homem negro. À medida que a série avança, a investigação é colocada em segundo plano quando percebemos as reais intenções de Marvin. Dessa vez ele não quer só chocar. Ele não quer só aterrorizar. Ele quer escancarar o produto final do racismo sob uma perspectiva extrema que desafia o público.
"Eles: O Medo" rompe com uma lógica maniqueísta ao enxergar a raiva como o produto do caos. O abismo que separava os protagonistas cai por terra quando a série é corajosa ao usar a violência gerada pelo racismo como um paralelo que une possível algoz e possível vítima. Possível... Não só são reviravoltas explosivas. Todas as soluções narrativas aqui vêm acompanhadas de um olhar muito cuidadoso para o drama implícito no horror. E ele é sólido. Ele é perturbador. O medo é real. E "Them" cresce enquanto terror ao se desafia a usar a convenções do gênero para concretizar essa nova ameaça em tela.
A segunda temporada troca a brutalidade do horror explícito por uma construção de ameaça mais sinistra. O terror está aqui, mas não da forma com que você muito provavelmente esperava. A série decide invadir a perspectiva dos personagens. Encurralar eles guiado por um clima de tensão que cresce ao longo dos envolventes sete episódios. "Eles: O Medo" sobe de nível quando o assunto é a direção. Cineastas como Ti West, Guillermo Navarro (diretor de fotografia de vários filmes de Guillermo Del Toro) e Axelle Carolyn capturam a espiral de insanidade dos personagens com soluções visuais que reforçam a sensação de inevitabilidade. Não é só estilo.
"Eles: O Medo" pensa a sua ameaça a fim de nunca banalizar ela. Sempre com planos fechados que muitas vezes sufocam os personagens à procura do vestígio de fragilidade escondido nas fachadas que eles lutaram para construir. Sempre que o tal homem ruivo surge em tela, eu senti um tipo de calafrio na espinha que anda em falta nos filmes e séries do gênero. Não é susto. É MEDO! É uma presença sombria que não só persegue os personagens. Ela nos atormenta por representar algo genuinamente desconfortável.
Nesse sentido, “Eles: O Medo" estende a mão para a primeira temporada ao criar uma ameaça que reflete um mal reconhecível. Só que, dessa vez, ele está longe de ser maniqueísta. Ele possui um background. Ele possui uma identidade. Ele possui uma vida que a série - brilhantemente - investiga com direito a uma reviravolta daquelas... Um olhar tão corajoso para o produto final do racismo que atenua até alguns problemas dessa temporada, como a dificuldade em dar arcos sólidos aos personagens de apoio e a necessidade de traçar um paralelo direto com a temporada anterior.
"Eles: O Medo" traz o horror para uma zona mais complexa sem diluir a verve pesada da série numa segunda temporada que avança no tempo consciente que o mundo racista segue alimentando "monstros" ameaçadores. E eles só precisam de uma oportunidade para (re)aparecer.
“Eles: O Medo” está disponível na Prime Video.