"Furiosa: Uma Saga Mad Max" persegue novas emoções num espetáculo consciente e feminino
O raio caiu duas vezes no mesmo lugar!
"Furiosa: Uma Saga Mad Max" se recusa a ser uma extensão de "Mad Max: Estrada da Fúria". O universo é o mesmo. A estética delirante também. Mas o olhar do diretor George Miller para a construção da sua heroína é diferente. O realizador expande a mitologia introduzida no seu último filme determinado a acessar a intimidade de uma guerreira forjada pela raiva.
É corajoso como o cineasta desafia a natureza adrenalizada do capítulo anterior disposto a se conectar com o olhar da sua protagonista. Enxergar além dele. Além da ferocidade. Além do medo. Além da violência. Além da vingança. "Furiosa: Uma Saga Mad Max" nunca renega a natureza trágica dessa história sobre uma criança raptada por um homem megalomaníaco obrigada a se submeter a tiranos para evitar que a sua pacífica comunidade seja descoberta e devastada.
Essa, à rigor, é a jornada de (de)formação de uma menina num deserto hostil e impiedoso. Quanto mais a protagonista se aproxima do seu objetivo - a vingança - mais ela se rende a lógica vil do mundo que roubou a sua infância. O silêncio então se torna o escudo de Furiosa (Aylala Browne) e um terreno fértil para George Miller. Indo de encontro ao frenesi narrativo de "Mad Max: Estrada da Fúria", o diretor se aproxima de um olhar mais clássico para as grandes histórias de vingança ao investir numa estrutura de cinco atos que ditam a metamorfose de Furiosa a partir das emoções experimentadas por ela.
É genial, na verdade, como Miller projeta a expansão do universo através dos olhos da menina raptada. O inacreditável vilão Dementus (Chris Hemsworth), nesse sentido, é uma adição e tanto para a franquia. Ele não é só um tipo ambicioso capaz de desafiar a tirania de Immortan Joe e do seu exército. Ele carrega consigo um resquício de consciência que reaproxima Mad Max do seu passado pés no chão. Escondido nas promessas de igualdade (e bonança) do líder de uma perigosa gangue de motoqueiros existe um vestígio doentio de esperança consumido pelo mesmo mundo que roubou tudo de Furiosa. Ambos são produtos dessa realidade. Ambos foram transformados por ela. Mas apenas um cultivava um sopro de sanidade.
E é aqui que "Furiosa: Uma Saga Mad Max" se difere por completo do seu antecessor ao enxergar o efeito corrosivo da vingança no destino dos seus personagens. George Miller usa a promessa de revanchismo em escala épica para acessar a intimidade de Furiosa. Ele manipula as expectativas do público enquanto se conecta ao olhar dela. E eles falam. Eles escondem sentimentos. Eles canalizam a dor. Eles reprimem o medo. Eles apontam o caos. Qualquer outro diretor teria perdido o foco pelo caminho. Teria sacrificado a construção do arco dramático da personagem título em prol de outros conflitos mais expansivos que orbitam a trajetória dela.
Mas em "Furiosa: Uma Saga Mad Max" George Miller é totalmente fiel à sua protagonista. Ela é a bússola. Ela é o norte. Ela é o vestígio de esperança que o filme destrincha no silêncio dos expressivos olhares das atrizes Alyla Browne e Anya Taylor Joy. Uma metamorfose delicada que nunca se limita a transformação física. Nem a um ideal de heroísmo virtuoso. Furiosa tem raiva. Furiosa tem pressa. Furiosa está presa. E ela se "liberta" de verdade nas espetaculares sequências de ação. É impressionante o que George Miller faz mais uma vez aqui. Desta vez nós estamos dentro das máquinas de guerra de Immortan Joe. E elas refletem o caos que consome Furiosa.
O cineasta pensa as cenas de ação como uma extensão do ódio da protagonista. Uma jornada de empoderamento que nasce da conexão entre o corpo e a máquina. Nesse processo de (de)formação, Furiosa encontra a voz na violência. Uma promessa de libertação ilusória que o filme sempre coloca em xeque através da figura de Dementus. Através daquela relação de causa e consequência que traz a história de vingança para uma zona íntima que George Miller não se permite escapar.
E é isso que torna "Furiosa: Uma Saga Mad Max" um filme tão diferente na relação com o antecessor. Um espetáculo visual de tirar o fôlego, renovado a cada ato, que se desafia a perseguir emoções que extravasam o limite da ação. “Devolva a minha infância”, grita Furiosa prestes a agir com a mesma perversidade daquele que lhe roubou tudo. O último ato, em especial, destrói as nossas expectativas ao trazer a guerra da protagonista para um terreno íntimo que se difere de tudo o que a gente viu na franquia até então. E Miller faz isso sem sacrificar o senso de espetáculo que sempre esperamos assistir em títulos do universo Mad Max. Do alto dos seus 79 anos, o diretor tem vigor de sobra para assinar sequências que explodem em possibilidades inimagináveis. Aqui ele investe em novos veículos aéreos que só tornam o balé automobilístico pelo deserto mais expressivo e vertiginoso.
Sempre com efeitos práticos insanos e com um CGI que surge apenas como um precioso complemento cênico. Artificial? PIADA! Tudo aqui tem peso. Tudo aqui tem potência visual. Tudo aqui tem também um senso de plasticidade que você não vai encontrar tão rotineiramente no cinemão hollywoodiano. São imagens ricas em detalhes. Em cores. Cada plano carrega consigo o belo. O caos. A destruição. É de encher os olhos mais uma vez. E de penetrar os ouvidos também.
O design de som em "Furiosa: Uma Saga Mad Max", aliás, é um capítulo à parte. Num filme em que o silêncio dita o tom trágico da história, os roncos dos motores surgem como uma ameaça no deserto. A enfurecida trilha sonora de Tom Holkenborg, aqui, dá lugar também aos sons daqueles veículos. Aos ruídos que simbolizam uma presença ameaçadora. São graves potentes que merecem ser experimentados numa sala de cinema. "Furiosa: Uma Saga Mad Max" escancara o resquício de humanidade consumido pelo caos criado pelo homem numa história de vingança consciente, explosiva e intimamente feminina.
“Furiosa: Uma Saga Mad Max” chegou nessa quinta-feira (23) nos cinemas.