"Geração do Futuro" usa a maternidade para discutir o natural num mundo artificial
Um futuro com cara de... presente!
"Geração do Futuro" fisga com uma visão de futuro indiscutivelmente curiosa, mas intriga de verdade ao contrapor o virtual e o natural num Sci-Fi sobre o ato de gerar uma vida. É fascinante como o filme escrito e dirigido por Sophie Barthes projeta uma realidade tecnológica em que as IA's se integraram completamente à nossa rotina nos grandes centros urbanos.
Em "Geração do Futuro", o artificial triunfou. Em Nova York, as pessoas não conviviam apenas com casas inteligentes e assistentes virtuais onipresentes. O biológico perdeu vez. Ninguém mais comia frutas naturais. O "ar puro" era inalado apenas em alguns pontos de recarga. A natureza deixou de existir na realidade das metrópoles. Nesse cenário, uma grande corporação cria a gestação artificial.
Por alguns milhares de dólares, qualquer pessoa - homem ou mulher - poderia engravidar "virtualmente" e experimentar o ato de gerar uma criança numa espécie de ovo tecnológico. Quase como um tamagoshi dos anos 1990 (quem lembra?). Via app você teria que alimentar o feto. Interagir com ele. Criar laços. Programas sons. Acompanhar o nascer da criança sem precisar engordar, ter enjoo, ver os pés inchar, conviver com as sequelas físicas pós-parto.
Rachel (Emilia Clarke) não pensa duas vezes em aceitar um convite de última hora e decide ter o seu primeiro filho num útero artificial. O problema: Alvy (Chiwetel Ejiofor), o marido, era um botânico dedicado a vida natural. Ou seja, nunca passaria pela cabeça dele ter um filho por vias tão virtuais. É bem interessante como "Geração do Futuro" se constrói a partir desse choque de visões de mundo sem anular cada uma delas. O diferencial do filme está na forma que a cineasta enxerga o humor nesse contraponto improvável.
Geralmente, o virtual tende a se opor ao analógico no universo das ficções científicas. Barthes, contudo, avança na discussão ao trazer o biológico para o centro da equação e discutir o efeito do virtual bebê na relação/metamorfose dos dois. Com um senso de humor fino e um design de produção expressivo, a realizadora mergulha nessa visão de futuro determinada a usar a potencial artificialidade na gravidez para enxergar as angústias inerentes ao ato de gerar uma criança.
O que começa causando curiosidade, logo se torna estranhamente reconhecível. A tecnologia não só aproxima os protagonistas. Ela inverte arquétipos. Ela naturaliza esse processo de gestação tecnológica a fim de tocar em questões mais íntimas com um senso de autenticidade saboroso. Enquanto Ivan, o homem da natureza, vê o seu senso de "maternidade" aflorar à medida ganha a chance criar laços mais físicos com o feto, Rachel, a mulher da tecnologia, se vê presa às mesmas imposições que sempre acompanharam o feminino nesse processo.
O melhor de "Geração do Futuro" fica pela forma com que Barthes não dá a sua protagonista a liberdade "vendida" por um conceito de maternidade frequentemente comercializado. O controle sobre o corpo, aqui, não significa o controle sobre a natureza de um mundo que insiste em impor tabus ao feminino. Enquanto Alvyn vê novas possibilidades, Rachel esbarra nas mesmas barreiras, só que dentro de um cenário diferente.
Enquanto o homem da natureza em momento algum é "cobrado" por gerar um filho artificialmente, a mulher da tecnologia é pressionada por um desempenho profissional melhor no numa empresa de marketing digital. Até porque, agora, ela não tinha a "desculpa" de estar grávida. Não fisicamente. "Geração do Futuro" é perspicaz ao enxergar a ironia nesses contrastes e a partir deles tecer um oportuno comentário sobre a maternidade além do biológico.
O que falta ao filme é integrar o Sci-Fi a narrativa. À medida que a trama avança, "Geração do Futuro" passa a transitar pela superfície dos temas propostos. A cineasta parece ter pressa em trazer o futuro para o presente sem abordar as consequências dessa gestação tecnológica na relação do casal. É intuitivo, mas menos desafiador (e imaginativo) do que prometia ser. O filme troca viés satírico revelado em cenas maravilhosas, como a narração da fecundação em tempo real, por um olhar mais preso a uma realidade que tende a redundância.
Barthes, em especial, se repete ao tentar imprimir em tela os ressentimentos de Rachel enquanto uma mulher/mãe com dificuldades em criar laços nessa gestação à distância. Os olhares angustiados da carismática atriz Emilia Clarke, por sinal, dizem bem mais do que os sonhos convenientemente expositivos da protagonista. São detalhes que - menos mal - não anulam o charme de "Geração do Futuro". Um Sci-Fi que usa essa projeção de realidade artificial para expor as pressões naturais ao feminino no processo de gestação.
“Geração do Futuro” está disponível no Telecine.