"O Bastardo" impressiona com um olhar moderno para uma clássica história de ambição masculina
O olhar para o feminino, aqui, faz toda a diferença
"O Bastardo" revisita uma página obscura da história da Dinamarca com um olhar moderno para uma narrativa clássica. Essa é a história de um desbravador. Um homem comum com anseios de grandeza determinado a prosperar através do trabalho numa região inóspita. O diretor Nikolaj Arcel não renega a sua principal influência: o western americano. Não perde a chance também de enxergar um outro lado dessa história de ambição.
Um mérito que precisa ser dividido com a escritora Ida Jessen, autora do livro "O Capitão e Ann Barbara". Foi dela a ideia de trazer novas "cores" a história do soldado Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen), um capitão filho bastardo de um nobre que, à procura do reconhecimento da alta corte, resolve tentar tornar as inférteis terras da Jutlândia frutíferas para o reino. Essa é uma história real. Mas não é necessariamente ela que Arcel quer contar aqui.
A partir do texto de Jessen, o cineasta decide propor um novo olhar para a jornada de ambição de Ludvig. E ele - diretor - nunca parece iludido por um ideal de prosperidade que os clássicos faroestes americanos ajudaram a popularizar. A realidade aqui nutre uma história sobre o vazio que precede - ou talvez acompanhe - a grandeza. Uma sensação potencializada primeiro pelas composições cênicas assinadas por Arcel. Tal qual John Ford ou Sergio Leone, o realizador dinamarquês investe em planos abertos. Panorâmicos. Imagens tão belas, quanto opressoras daquela região intocada. São enquadramentos que reforçam a impotência do protagonista diante do mundo ao seu redor.
Naquelas terras inóspitas, Ludvig sempre parece pequeno. Isolado. Exposto. "O Bastardo" estabelece essas sensações em sequências expressivas projetadas para reforçar a dinâmica "homem vs mundo" que pautou verdadeiros clássicos dos westerns americanos. E não só através delas. O diretor investe numa narrativa familiar aos olhos do público. A natureza não é o vilão aqui. O antagonismo está na figura do sádico nobre. Na representação indiferente dos conselheiros do rei. No olhar ignorante dos colonos alemães.
São representações unidimensionais, mas que servem ao propósito inicial de "O Bastardo" que era expor o outro lado do sonho de grandeza de Ludvig. Porque ao desafiar todos os limites, o soldado estava lutando por um lugar nessa mesa. Ele queria fazer parte de um sistema vil determinado a explorar com promessas ilusórias. Arcel poderia ter deixado essas contradições em segundo plano. Poderia ter se rendido a jornada de superação do homem comum.
A maior parte dos clássicos westerns americanos fizeram isso. Excluíram toda a perversidade no contexto em prol da narrativa do homem branco enquanto símbolo de progresso. Só que uma coisa impede Arcel de seguir esse caminho: a história. E ela passa a ter um outro caráter aos olhos de Ida Jessen. “O Bastardo” ganha contornos cada vez mais inquietantes quando a presença feminina começa a ofuscar o pálido protagonismo masculino de um homem íntegro movido por uma ambição egóica.
Ann Barbara (Amanda Collin, numa atuação cheia de nuances) pode não ter existido na vida real, mas ela surge para simbolizar o horror implícito nesse contexto. E é aqui que o olhar clássico se funde ao moderno. A personagem atribui novos sentidos a jornada de Ludvig. Uma presença trágica que preenche o vazio de um homem idealizado pela ficção. E essa, volto a frisar, é uma peça de ficção inspirada em fatos. Nem todos os eventos do filme são reais, mas a realidade está em todo lugar. No preconceito aos povos ciganos representados em outra personagem feminina, a cativante Anmai Mus (Melina Hagberg). Está também na impotência feminina na alta corte, escancarada na indômita figura da condessa Edel Helene (Kristine Kujath Thorp, eu adoro essa atriz).
São elas que humanizam Ludvig. São elas que o transformam no homem que ele não foi. E não para torná-lo o típico herói do velho oeste. Mas para, através da história do bastardo que queria ser nobre, mergulhar num mundo injusto capaz de corromper até o mais puro dos sonhos. “O Bastardo” nos faz enxergar a ilusão de prosperidade. Nos faz crer - ao menos por alguns instantes - que o trabalho árduo seria o bastante para estabelecer a igualdade naquele cenário. A vigorosa fotografia em tons frios de Rasmus Videbæk enxerga as cores que desafiam um cenário árido por natureza. É belo, até que se torna violento.
E “O Bastardo” testa as expectativas do público ao pontuar essa narrativa clássica com rompantes de violência extremo que rompem de vez com os westerns americanos. As ações e reações possuam peso. O delírio de poder dessa elite indiferente se manifesta em tela em cenas agressivas que situam o espectador quanto a realidade dos fatos. Quanto ao que estava em jogo. Arcel retrata o passado do seu país sem pudor. O luxo dos palacetes e dos figurinos da corte - o design de produção é um espetáculo - é frequentemente poluído por atos gráficos de perversidade. E isso só catalisa o clima de tensão de um filme que nunca se isenta ao revelar as consequências por trás de tamanha ambição.
Em “O Bastardo”, a ficção potencializa os fatos. No fim, Nikolaj Arcel até tenta fazer algumas concessões ao público, mas a realidade fala por si só. E ela termina impressa na metamorfose no olhar do ator Mads Mikkelsen. Num distorcido ideal de nobreza consumido pelo vazio que permanece conosco ao fim da sessão. Essa é a história de um desbravador. E ele sempre só será lembrado por isso...
“O Bastardo” está disponível nos cinemas.
Nota: 8,5/10