O inquietante (e provocante) apocalipse tecnológico da Netflix
Crítica | O Mundo Depois de Nós
"O Mundo Depois de Nós" é uma experiência inquietante. Há muito tempo o offline não soava tão assustador como nesse thriller apocalíptico que provoca enquanto estudo social sem deixar de extrair a tensão do mistério em questão. O diretor Sam Esmail (da série Mr. Robot) tem um aliado poderoso aqui: o medo.
Do tipo reconhecível. Um medo tecnológico. Ou melhor, um medo gerado pela "cegueira" num mundo analógico. É intrigante ver como o cineasta usa o isolamento dos personagens como um ponto de corte. Esse não é mais um filme sobre a luta por sobrevivência num mundo caótico. Esse é o filme sobre duas famílias. Sobre duas famílias unidas pelo desconhecido. Por um medo em comum: e se nada for mais como antes?
Ao focar no elemento micro, Esmail não só consegue orquestrar de forma corajosamente intuitiva esse comentário sobre a nossa dependência num mundo tecnológico. Ele vai além. Ele traz o caos urbano do nosso dia a dia para o centro da equação num filme que parte de um mistério universal para mergulhar nas tensões geradas nesse contexto.
Quando as férias de uma família como tantas numa casa de luxo é interrompida por um ataque cibernético, eles se veem obrigados a encarar não só o medo do desconhecido. Em "O Mundo Depois de Nós" é o real que assusta. É o visível que desconforta. O diretor nunca perde a consciência. Nunca se seduz pela promessa de terror em escala macro implícita na premissa.
"O Mundo Depois de Nós" acontece na incerteza. Na tensão racial quando os donos da casa alugada pela tal família reaparecem à procura de abrigo. Na dificuldade de dialogarmos com outro seres humanos sem o suporte de um Google, um Tinder ou uma rede social. Sabe o que é fascinante aqui? Todos os dilemas (e mistérios) introduzidos pelo filme seriam ridiculamente solucionados com três cliques no mundo online. Que ver uma série? Tenta na Netflix! Quer ser informado sobre um evento inesperado? Dá um Google!
Esmail parte dessa zona de conforto para nos desconfortar. Ele assume a inércia dos protagonistas como o agente catalisador da história. O expositivo então dá lugar ao intuitivo. "O Mundo Depois de Nós" intriga ao sorrateiramente nos fazer temer aquela realidade. O que começa de forma inofensiva, como o dia sem celular de uma família de férias, ganha um caráter tenso à medida que o offline permanece. À medida que as certezas viram dúvidas. A imersão, aqui, acontece na base da identificação.
Como era viver no mundo em que poderíamos nos perder numa viagem de carro sem GPS? Como era viver no mundo em que você não podia usar o Google para lembrar o nome de um filme, ou descobrir se você está com uma doença grave a partir de alguns sintomas? São obstáculos aparentemente pequenos que somados criam uma sensação de anomia por si só inquietante.
Mas sabe o que é mais assustador em "O Mundo Depois de Nós"? O porquê é irrelevante. Por mais que Esmail "quebre" um pouco dessa imersão ao se explicar além da conta no último ato, o filme impacta de verdade ao focar na nossa impotência nesse velho novo mundo analógico proposto pelo filme. É uma sacada de mestre que, nesse caótico cenário, o dilema de uma das personagens gire em torno da impossibilidade dela assistir ao último episódio da série "Friends" (1994-2004). A busca de Rose, uma menina de 13 anos que está sempre sozinha e nunca é devidamente ouvida, remete diretamente a outra época.
"Friends", aqui, surge como um símbolo de transição do mundo analógico para o conectado. O último sucesso televisivo da era offline? Ou o primeiro fenômeno na era online? Mais do que uma referência pop, esse é um ponto de interseção que ilustra a aflição dos personagens. E o fascinante em "O Mundo Depois de Nós" é que o foco está sempre neles. No fator humano. No choque de duas famílias totalmente diferentes unidas por um mistério que os expõe enquanto indivíduos. Sem maniqueísmos. Sem julgamentos. Sempre muito atento ao produto desse mundo conectado.
Mahershala Ali é um ator fenomenal. O seu personagem traz um ar lúcido enigmático que faz o filme acontecer. O seu H.G age seguindo as suas vivências num meio racista. Ele parece acostumado a lidar com a desconfiança. Um tipo intrigante que rivaliza com a "translúcida" personagem de Julia Roberts. Como é bom ver uma estrela de Hollywood disposta a encarar papéis tão "amargos". Tão carregados de uma verdade indigesta. Uma mulher na zona cinza que separa a convicção do preconceito. A hostilidade da proteção. Eu adorei conhecer esses personagens a partir dos diálogos. Sem flashbacks. Sem referências visuais. Sem didatismos. O mundo analógico nos desafia a conhecer o outro.
E Esmail sabe como usar a engenhosa mise en scene para expor aquilo que as personagens não querem verbalizar. A sua câmera, em vários momentos, explora ângulos e espaços na geografia da casa para sugerir o privilégio da família branca ou o crescente descontrole gerado pelo caos. Sempre observando as personagens como num experimento. À distância, por vezes simulando a invisibilidade, por vezes interferindo na nossa percepção, mas sempre atento a verdade das personagens. Sempre criando imagens potentes que aliam técnica ao estilo para escancarar a distorção em torno daquelas personagens.
É empolgante, também, ver como Esmail projeta o cinema de gênero aqui. "O Mundo Depois de Nós" é um filme pós apocalíptico de verdade. Em pelo menos três momentos, o cineasta impacta com sequências imponentes que só reforçam a impotência dos personagens. A cena da fuga de um "engarrafamento" é espetacular. Esmail não quer apenas criar sequências tipicamente hollywoodianas. Ele quer (e consegue) usar os instrumentos de "conexão" no mundo moderno (navios, aviões, carros) para diminuir as personagens. Para redimensionar o tamanho deles diante do caos.
Se falta algo a "O Mundo Depois de Nós" é saborear mais esses momentos de tensão pura e cristalina. Esmail não é um diretor perverso. Ele arquiteta uma trama que se retroalimenta dos nossos medos com maestria, mas que nem sempre os concretiza em tela. Não de forma explícita. E isso não é um problema. Até porque "O Mundo Depois de Nós" confia na inteligência do público ao usar o afiado poder de sugestão do texto não só para alimentar temores, mas para revelar a ameaça na ausência. Na ausência de regras. Na ausência de informações. Na ausência de humanidade. É a tecnologia enquanto agente da ordem. No fim, uma certeza: nunca estivemos tão expostos.
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