"Rapto" enxerga a tensão na mentira de uma mulher abandonada
A dramática natureza de um crime
"Rapto" parte de uma pergunta recorrente sempre que um crime ganha contornos midiáticos: por que aquela pessoa fez isso? E para respondê-la, o filme rompe com a lógica sensacionalista ao acompanhar os passos de uma mulher que resolveu criar uma mentira para preencher o vazio que tomou conta da sua vida.
Lydia (Hafsia Herzi) era uma parteira excelente no que fazia que vê a sua realidade ganhar um inesperado novo rumo. Ela não só descobre que o seu namorado estava a traindo. Ela também recebe a notícia que a sua melhor amiga, a radiante Salomé estava grávida. Lydia queria se manter presente, mas algo estava errado. Uma sensação brevemente atenuada quando ela conhece Milos (Alexis Manetti) e começa a nutrir sentimentos por ele nunca correspondidos. O tempo passa. Lydia estava só, carente e vulnerável. E ela resolve usar a filha recém-nascida de Salomé para atrair a atenção de Milos. Só que para isso ela cria uma mentira cruel com desdobramentos perigosos.
"Rapto" reluta em ser o filme que o público esperaria que fosse. Esse não é um suspense sobre uma sequestradora de bebês. Esse é um estudo psicológico inquietante sobre o efeito corrosivo da solidão na identidade de uma mulher desafiada a conviver com a sensação de abandono. É interessante como a diretora Iris Kaltenbäck usa o ponto de vista masculino de Milos, o alvo da mentira, para desnudar essa enigmática figura.
Lydia é silenciosa. Lydia é companheira. Lydia queria ser amada. Os olhares penetrantes de Hafsia Herzi, numa das minhas atuações favoritas do ano, escondem algo que a sua personagem não queria dizer. Primeiro por proteção. Lydia era uma boa amiga. Ela quis ser forte por Salomé. Depois pela crescente frustração. Em seguida por medo, culpa e instinto de proteção. A cineasta usa a incrédula narração em off de Milos como um fio condutor nessa tentativa de decifrar uma personagem que a cada ação coloca as suas virtudes em xeque.
E o filme parece sempre interessado em entender os motivos dela. "Rapto" troca o julgamento inclemente pela empatia. Kaltenbäck olha através dos atos da protagonista para entender também o seu mundo. O fato das ações dela serem altamente questionáveis não impedem a realizadora de validar algumas das suas motivações. Porque a angústia silenciosa de Lydia nasce de uma rejeição reconhecível. Nasce de um olhar masculino incapaz de se preocupar com a responsabilidade afetiva. Nasce de uma amizade abalada pela chegada de uma criança.
É a tristeza de uma mulher consciente que todos ao seu redor nunca retribuíram a ela o mesmo afeto e consideração dedicados. Enxergar essa realidade sob a perspectiva de Lydia é enervante. A fotografia em cores vibrante aos poucos ganha uma tonalidade opaca. Os sorrisos ficam mais escassos. Os silêncios, ruidosos. Os saltos temporais sugerem a inércia. Semana se passam num fade-out. É como se ela só existisse naquela realidade ficcional que criou para si. A mentira expõe Lydia, cria uma crescente pressão invisível, mas endossa também a frustração da personagem. Porque é através da maternidade que ela consegue a atenção. Ela se sente integrada. Presente. Útil.
Kaltenbäck provoca ao anular o feminino em prol de um arquétipo maternal que passa a definir as duas amigas. Milos pode ser o narrador da história, mas a ausência masculina é o ponto central em "Rapto". Quando Salomé chora rejeitando a filha, é Lydia que está presente. Quando Lydia sofre com o abandono do namorado, é o vazio que a "consola". É sintomático, mesmo que superficial em sua proposta. Se falta algo ao filme, é mergulhar na indiferença deles aos olhos dela. A diretora prefere a sugestão...
"Rapto" não quer dar razão a protagonista. O filme quer nos fazer experimentar as sequelas da falta de responsabilidade afetiva e a partir delas entender a origem de uma mentira inconsequente. E faz isso camuflando a dor num thriller psicológico que enxerga a tensão num desespero reconhecível (e em cenas de parto sufocantes).
Com distribuição da Imovision, “Rapto” está disponível nos cinemas.