"Rebel Ridge" traz a realidade para o cinema de ação num filme surpreendente
O brucutu da vez, aqui, não tem licença para matar
A hora inicial de "Rebel Ridge", o novo thriller de ação da Netflix estrelado por Aaron Pierre, transborda tensão ao enxergar nas brechas de um sistema corrupto o gatilho para "desarmar" uma trama mergulhada na realidade. É interessante como o diretor Jeremy Saulnier (do visceral "A Sala Verde) retorna após um hiato de alguns anos com um filme policial disposto a atualizar esse olhar para o histórico de injustiças imposto a comunidade afro-americana nos EUA.
O filme, à rigor, se constrói a partir de uma brecha legal que reacende o olhar para o racismo que segue institucionalizado no "coração" da américa. Terry (Aaron Pierre) era um ex-fuzileiro naval que estava à caminho de uma nova cidade para pagar a fiança do seu primo, um homem prestes a ser transferido para uma prisão de segurança máxima. Só que no meio do caminho ele é violentamente abordado por dois policiais. Com o pretexto da suspeita, os patrulheiros resolvem - sem qualquer indício de ilegalidade - confiscar o dinheiro de Terry até que ele pudesse provar a origem daqueles milhares de dólares. O problema é que ele não tinha tempo. O que o obriga a tomar decisões drásticas.
E são elas que, na primeira hora, fazem de "Rebel Ridge" um thriller de ação inquietante. Porque Saulnier é inteligente ao flertar com as regras dos filmes de ação clássicos, só que dentro de uma realidade em que qualquer ato de inconsequência poderia custar caro. O diretor então troca a promessa de pancadaria desenfreada por um olhar mais consciente para o gênero. Mais centrado na impotência de Terry diante de um sistema falho. O grande vilão, aqui, é a corrupção personificada na ardilosa figura do chefe de polícia vivido por um inesgotável Don Johnson.
"Rebel Ridge" usa esse desproporcional choque de forças num thriller que nunca se rende ao maniqueísmo barato. O cineasta prefere expor os seus personagens. O filme vai além da gritante questão racial, a cena de abertura é daquelas revoltantes, ao naturalizar a corrupção sustentada por leis que expõem a verdade por trás da fachada do "servir e proteger". E o filme surpreende quando usa a promessa de violência como um agente de igualdade entre polos totalmente opostos. A ação, aqui, possui peso, mas nunca é mais potente que a troca de ameaças veladas à luz de um sistema injusto. São diálogos afiados. A palavra, aqui, tem poder. Saber demais pode ser perigoso.
Terry teme por ser um homem negro numa cidade em crise moral e financeira. Já o chefe de polícia Sandy Burnne parece ameaçado ao desconfiar que aquele forasteiro poderia arruinar o seu plano. A consciência em "Rebel Ridge" está diretamente ligada a tentativa dos dois não chamarem a atenção. São conflitos velados. São manifestações silenciosas de força que o realizador trabalha em composições visuais que aproximam esses personagens. E sem espaços para falsas simetrias. Nem todo corrupto é ruim, mas todo corrupto é um... corrupto. E a corrupção mata.
"Rebel Ridge" não só escancara isso, como ousa ao expor essa realidade sem se render - num primeiro momento - ao frenesi vazio que poderia ter sequestrado a história. Por um instante, achei que o filme de Jeremy Saulnier iria seguir o caminho de um "Rambo - Programado para Matar". Só que no mundo real, a justiça com as próprias mãos não existe. Não sem consequências.
E é aqui que o filme começa a perder potência, principalmente quando se distancia de Terry. Por mais que a personagem de Anna Sophia Robb adicione um olhar mais profundo para a corrupção policial em questão, o realizador peca ao diluir o protagonismo do ex-fuzileiro naval em prol de uma trama conspiratória que vai se tornando menos inteligente na sua segunda hora. O diretor recorre a clichês do tipo "garota bem intencionada precisa de ajuda" para inflar um suspense que explode de verdade quando enxerga a raiva reprimida no olhar de Aaron Pierre. O desespero de quem precisa correr contra o tempo.
Terry é um dos melhores "brucutus" que o cinema de ação viu nos últimos anos. Ele é carismático. Ele é consciente. Ele é muito 'bad-ass'. Ele - e Saulnier - nos convencem que ali estava um homem capaz de desafiar um sistema. Não só na pancadaria, mas na inteligência. Porque ele carrega vivências que o filme explora apenas na superfície. E tudo para ampliar o tempo de tela dos demais personagens - a maioria deles à serviço de uma investigação que caminha em círculos sem grande mistério. Para se aproximar também de um olhar mais adrenalizado para o gênero.
O diferencial, contudo, é que, mesmo nesses momentos, o diretor parece sempre conectado com o senso de consciência do protagonista. No mundo real, o herói do cinema de ação pode ter vida curta. Por isso, "Rebel Ridge" não se entusiasma com a ideia de torná-lo esse tipo de herói convencional. Uma máquina de matar sem licença. Existem boas motivações aqui. Terry ultrapassa limites porque precisava. Já Sandy Burnne se rende a corrupção porque era conveniente. Esse é o mundo. Essa é uma realidade reconhecível. E é por ela que, apesar do clímax ancorado pela falta de ousadia, a tensão nunca se esvai.
“Rebel Ridge” está disponível na Netflix.