"Testamento" provoca ao discutir o envelhecer no mundo moderno
Uma comédia que não poupa ninguém!
Do alto dos seus 83 anos, o diretor Denys Arcand (do vencedor do Oscar "As Invasões Bárbaras") faz de "Testamento" um exemplar provocante de um cinema que pensa o cotidiano a partir das contradições do mundo moderno. É revigorante como o cineasta assume um olhar sem filtros para discutir as distorções das novas gerações através do olhar esgotado de um homem idoso consumido por um ecossistema social que ele já não era mais capaz de pertencer. Sequer de entender.
Arcand, contudo, nunca se rende ao clichê do "no meu tempo era melhor". O choque de gerações, aqui, conduz o irreverente filme canadense para uma zona autenticamente mordaz. Essa é a história de Jean-Michel (Rémy Girard), um escritor - nas horas vagas - melancólico consciente que o seu tempo na Terra estava próximo do fim. Morador de um asilo nada heterogêneo, ele via os dias se tornarem noites sem qualquer pressa. Enquanto alguns dos seus colegas de asilo tentavam desafiar os limites da idade, Jean preferia se "abrigar" nas memórias de um passado nada brilhante e colher os poucos frutos uma geração que nunca mudou o mundo.
Uma rotina um tanto inerte que ganha contornos peculiares quando um grupo de ativistas da causa indígena descobre que naquele asilo estava uma pintura secular que retratava a colonização do Canadá sob uma discutível lógica eurocêntrica. Vendo os protestos e o sensacionalismo da mídia, Jean decide ajudar Suzanne, a bem-intencionada diretora da instituição, expondo as hipocrisias do mundo moderno.
"Testamento" se recusa a ser um filme sobre o envelhecer. A melancolia de Jean, na verdade, é apenas um afiado ponto de partida para uma crônica sobre um ideal de progressismo branco que esbarra na alienação causada por certezas altamente contestáveis. Arcand aproxima "lacradores" e "conservadores" numa nau à deriva que conduz o olhar do filme para além da superfície das piadinhas envolvendo estereótipos reconhecíveis. "Testamento" começa não poupando ninguém.
O cineasta parece disposto a atacar todo tipo de radicalismo e o faz com um senso de irreverência saboroso. São idosos que não conhecem os próprios limites. São ativistas que não conhecem a própria causa. São políticos que "negociam" os seus ideais para atender a um senso comum midiático. Arcand, primeiro, se rende a ridicularização do tipo escrachada. Sempre aos olhos desse idoso incapaz de lidar com temas como a identidade de gênero, o feminismo e a cultura do cancelamento. A cena da premiação é o melhor exemplo da falta de filtro do veterano realizador.
Jean é literalmente "atropelado" por suas jovens colegas de profissão. Todas rascunhos estereotipados (e contestáveis) de um imaginário reacionário feminino que o filme não tem pudor em replicar. Não para endossar um olhar retrógrado. Mas para contestá-lo. "Testamento" não faz de Jean uma voz de um passado virtuoso. Muito pelo contrário. Ele paga por afeto. Algo natural segundo o idoso. Ele entende a perda de privilégio branco como um processo natural. "No passado era mais simples. Homens eram homens e mulheres eram mulheres", diz Jean após descobrir que uma das suas colegas de asilo adotou o pronome neutro. "Era melhor?", questiona Suzanne. "Provavelmente não", admite Jean.
Aos olhos dele entendemos o retrocesso enraizado na formação do homem branco ao longo de gerações e o produto final desse processo. Uma jornada solitária. Melancólica. Vazia. Até que o novo invade a sua rotina. E "Testamento" transforma a arte no brilhante fio condutor desse estudo sobre o envelhecer num mundo moderno. A pintura de um encontro entre os colonizadores franceses e os fragilizados nativo americanos ganha múltiplas conotações aqui (e elas dizem muito).
A ativista/influencer enxerga única e exclusivamente a má representação dos povos originários. Já a mulher com ascendência indígena encara aquele mural como um retrato dilacerante de um passado trágico. Jean, por sua vez, nunca viu nada ali. Um choque de percepções que conduz o filme para uma zona mais inquietante, em especial, quando o cineasta se vê desafiado a traçar um paralelo entre a arte e o envelhecer. Ou melhor, entre a arte e o esquecer.
É possível reinterpretar obras do passado com o olhar descontextualizado do presente? É necessário? Existe alguma utilidade nesse processo? Denys Arcand tem certeza que não. O octogenário escancara o vazio nessa cultura do cancelamento que se aproxima perigosamente da representação artística com a convicção de um jovem radical. Ele sabe que nenhuma tinta branca irá apagar o
passado. É a arte enquanto fruto do seu tempo. Logo, uma manifestação imperecível.
Nesse sentido, "Testamento" funciona como o mural dos colonizadores. Uns vão se ofender com os comentários ácidos sobre um panfletário ideal de progressismo. Outros vão ficar totalmente indiferentes diante do refinado (e potencialmente desestimulante) tempo de comédia da produção canadense. Alguns irão rir. Se emocionar. Se reconhecer. Talvez não hoje. Mas amanhã. Num futuro em que teremos a certeza que um diretor de 83 anos tem mais a dizer sobre a modernidade que muitos. jovens pensadores do cotidiano. Não por ser mais sábio. Tampouco mais antenado.
Mas por ter a coragem de encarar a realidade e rir da pretensão daqueles que acreditam que o mundo começou a ser mudado hoje. Nem o fato do filme tender a clichês conservadores no terço final diminuí o brilho dessa sátira reveladora sobre a relatividade no envelhecer.
Com distribuição da Imovision, “Testamento” está disponível nos cinemas.