"The 8 Show" mergulha no absurdo dos realities shows para escancarar a distorção da máquina capitalista
O novo "Round 6" da Netflix?
A nova série sul-coreana da Netflix vai te impactar. Vai te surpreender. Vai te incomodar. E pode te irritar também. "The 8 Show" é daquelas produções que se comprometem com o seu objeto de estudo. E ele NÃO é o fenômeno dos realities shows. Na verdade, o ácido dorama que chegou na última semana na Netflix provoca ao enxergar na dinâmica desse popular gênero a chance de expandir a discussão. De usar a promessa de enriquecimento repentino através de um programa de televisão como a ponte para um olhar inesperadamente perverso para a máquina capitalista.
"The 8 Show" não é o novo "Round 6". Nem parece querer ser. Isso porque a produção dirigida por Han Jae-rim persegue outros temas além da crítica aos excessos no culto aos realities shows. É uma série mais suja. Mais visceral ao retratar a ambição que se confunde com o desespero. Mais narrativamente anárquica também. "The 8 Show" abraça o absurdo sem medo de perder a atenção do grande público. O que não têm sido uma tendência na era do streaming (em especial na Netflix). A série segue os passos de oito estranhos que se unem num reality misterioso que prometia pagar por cada minuto dentro do programa. E não era pouco dinheiro não. Eles só tinham que entreter o público em troca de mais tempo. Todo mundo ali queria ficar bilionário. O problema é que, quanto mais eles conhecem as regras do jogo, mais eles descobrem que teriam que arriscar muito para enriquecer.
E é aqui que "The 8 Show" se difere por completo de "Round 6". O primeiro hit sul-coreano da Netflix enxergou o choque na morte. São brincadeiras infantis que conduzem indivíduos desesperados a um destino trágico. É o fim como a máxima consequência. 8 ou 80. Sem espaços para um olhar mais profundo para o que se escondia na ilusão dos protagonistas. Em "The 8 Show", por outro lado, os participantes precisam estar vivos. Eles não correm contra o tempo. Eles precisam dele para enriquecer. O tempo é dinheiro. Os primeiros episódios são um tutorial revelador. Em poucos minutos entendemos o real objetivo da série. Enxergamos também as potenciais distorções naquela engrenagem.
É inquietante como "The 8 Show" projeta na "realidade" dos realities shows os desvios em uma sociedade capitalista pautada pela inversão de valores, pela exploração de mão de obra e pelas promessas de enriquecimento através do trabalho. Privilégios geram tensões. O acúmulo de capital gera o poder. Uma combinação explosiva que "The 8 Show" explora sem pudores. Num cenário de plástico que realça a artificialidade na ilusão que os une, os oito estranhos veem a expectativa de lucro fácil se tornar sacrificante quando a desigualdade entra no centro da equação.
E é com um senso de humor perverso que a série resolve entender aqueles personagens a partir dos limites de cada um deles. O que começa de forma inofensiva, com jogos quase infantis, logo ganha um caráter visceral à medida que o mundo - através da participação do público - começa a se fazer presente naquela dinâmica. Em "The 8 Show", na verdade, não importa o que os personagens façam, o grande vilão da história somos nós, o espectador. Enquanto os participantes refletem os nossos “desvios” mais íntimos, a audiência escancara a perversidade em escala macro. Nós fazemos parte de uma engrenagem distorcida. As ações individuais são validadas (ou não) por uma força oculta que só aquece o clima de tensão, angústia e desespero.
E "The 8 Show" é criativo ao usar os holofotes como uma representação simbólica desse olhar doentio que move a história. A mecânica da mosca atraída para a armadilha pela luz é replicada aqui seguindo a lógica dos realities shows. Nas sequências “diurnas”, a fotografia ganha tons dessaturados que dão uma corrosiva sensação de umidade ao cenário. É quente. É sujo. É estressante. Não existe conforto. Não quando os participantes lutam por mais tempo. Sucumbem a degradação física, moral e emocional por mais alguns milhares de wones (poderiam ser reais, dólares, estalecas…). Só que ao mesmo tempo a luz é a certeza que eles estão sendo vistos, avaliados, recompensados.
Até por isso, a cada episódio o caos parece uma tendência. Alguns personagens, como a mimada nº 8 (Chun Woo-hee), trazem uma aura delirante a série que cresce à medida que o limites vão sendo superados. Outros, como o frágil nº1 (Bae Sung-woo), adicionam um senso de humanidade que impede a produção Netflix de sucumbir ao terreno da caricatura. Narrativamente falando, é interessante como "The 8 Show" não nos oferece muitos detalhes sobre o passado daqueles personagens. Tudo se baseia na relação de empatia/antipatia. E quando as informações chegam, elas adicionam um ar tragicômico a história. Só depois, claro, de encararmos o melhor e o pior daqueles participantes.
Num todo, aliás, a série se sai bem ao desenvolver esses personagens à partir dos traços de personalidade deles, criando tipos que vão da tolice unidimensional a sordidez psicótica num piscar de olhos. "The 8 Show" só peca mesmo quando se vê tentado a explicar as suas regras incansavelmente. Sempre com uma linguagem pop atrativa, mas excessivamente intrusiva. É como se a série recusasse o caos total. O temesse até. Mas no fim entendesse a inevitabilidade dele num mundo regido exclusivamente pelo capital. "The 8 Show" pode até te decepcionar em algum nível ao final dos oito envolventes episódios, mas muito provavelmente você não vai desgrudar os olhos da tela enquanto assiste a eles.
“The 8 Show” está disponível na Netflix.