Prestes a retornar para a sua aguardada quarta temporada, “The Boys” é reconhecidamente uma série provocante sobre a realidade dos EUA na era Donald Trump. Nas últimas temporadas, contudo, a produção Amazon começou a reverberar temas que - infelizmente - extrapolaram as fronteiras americanas. Num momento em que a extrema direita avançou nas eleições rumo ao controle do Parlamento Europeu, a sensação de “eu vejo o futuro repetir o passado” nos leva a crer que estamos diante de uma verdadeira ameaça.
E ela não surge na figura delirante do Capitão Pátria (Antony Starr). Nem na presença ambígua de uma congressista disposta a sujar as mãos para chegar ao poder. Ela não está na imagem desses líderes insanos e vilanescos com a ambição de controlar o mundo. O perigo está no silêncio do cidadão comum. Do “homem de bem”. O perigo está num personagem de apoio. “The Boys” entendeu isso perfeitamente ao associar a ascensão da mentalidade da extrema direita a um coadjuvante com poucos minutos de tela, mas muito revelar.
No tabuleiro “The Boys”, Todd (Matthew Gorman) tinha tudo para ser um tipo descartável. O novo padrasto de Janine (Liyou Abere), a filha do ‘bad-ass’ Leitinho (Laz Alonso), parecia ser um daqueles personagens de apoio que iria contrapor a imagem do herói. Um pai presente. Um sopro de normalidade. Só parecia… A primeira aparição do personagem acontece no episódio 1 da terceira temporada. Quando Leitinho vai visitar a filha, descobrimos que Monique (Frances Turner) decidiu iniciar uma nova relação. Era o aniversário de Janine e o tema da festa eram os super-heróis. A menina estava vestida de Luz-Estrela (Erin Moriarty). Já Todd surge empolgado trajando o uniforme do Capitão Pátria. Nesse momento, não teria como ele saber das incorreções do líder dos Sete. Até ali, pelo menos publicamente, o temido herói ainda estava sob as rédeas da Vaughn.
Mas…
O criador Eric Kripke tinha planos para eles. E “The Boys” é sutil, quase sorrateiro, ao enxergar na natureza comum desse “homem de família” o verdadeiro perigo na ascensão da mentalidade da extrema direita. É brilhante como a série usa esse tipo comum, sem poderes, sem qualquer vestígio de força, como uma espécie de termômetro. Um novo olhar para os excessos dos super-heróis. O que fica gritante no episódio 2 da terceira temporada. Todd surge muito empolgado para o especial de aniversário do Capitão Pátria. Mais empolgado do que qualquer adulto deveria estar. E quando o herói, incapaz de conter a sua fúria, foge do script num discurso inflamado sobre a sua impotência diante dos interesses dos poderosos, Todd passa a se reconhecer - ainda mais - na figura daquele indivíduo.
Quantas vezes, nos últimos anos, não ouvimos discursos antissistema como esse? Uma retórica muitas vezes baseada na perda de controle daqueles que exerciam algum poder no passado, mas se calaram para atender as novas “exigências” de um mundo moderno e progressista. Ao se seduzir pelos ideais fascistas de uma perversa heroína, o Capitão Pátria foi exposto aos olhos da nação que sempre o idolatrou. Ele precisava dessa aprovação. E ele, sem saber, iria reconquistar ela por outros meios. Todd então surge como um contraponto improvável a figura do herói. Ele era o homem emasculado. Ele se reconheceu na sensação de impotência do Capitão Pátria. Ele se encanta por essa promessa de ruptura.
Todd então só reaparece no episódio 5 da terceira temporada. E aqui notamos uma mudança drástica. Da elipse dos últimos eventos surge um novo homem. Aqui, mais uma vez em poucos minutos, vemos Todd se rendendo ao efeito do discurso do Capitão Pátria. Na TV, o herói “desafia a cultura do cancelamento” se assumindo “mais forte”, “mais inteligente” e “melhor”. Leitinho contesta Todd. Reclama da filha ter que assistir esse tipo de discurso. Mas dessa vez ele tem uma resposta. Todd sai em defesa do Capitão Pátria como nunca havia feito antes. “Ele está enfrentando os criminosos, as grandes corporações, a mídia”, diz Todd, seduzido pela retórica do líder dos Sete. Um detalhe importante, o padrasto de Janine fala isso enquanto corrige uma prova. Ali descobrimos que ele é professor de Ciências Sociais.
São detalhes que dizem muito. O problema nunca está no discurso de um. O problema está na forma com que essas palavras ecoam. E quando a distorcida mentalidade da extrema direita representada na figura do Capitão Pátria encontra na voz comum de um professor uma defesa inabalável, nós enxergamos o real perigo nesse cenário. Não são monstros. Não são homens e mulheres vilanescos. São pessoas comuns - como eu ou você - seduzidas por um discurso que traz consigo tudo o que pior o mundo tem a oferecer.
Algo que fica evidente na chocante derradeira aparição de Todd. Na cena final do último episódio da terceira temporada, o novamente super popular Capitão Pátria é recebido com entusiasmo por uma horda de patriotas entusiasmados com o ideal de “liberdade” que ele representava. Kripke - provocando como de costume - faz uma clara referência a cena da invasão do Capitólio ao situar o público quanto a ideologia daqueles protestantes. Do céu, o herói desce e apresenta o seu filho, o confuso Ryan. Eis que, escondido no meio da multidão, um opositor atira um copo de milk shake e atinge - por acidente - o filho do líder dos Sete. A reposta é feroz. Um raio superpoderoso explode a cabeça do protestante. O silêncio paira. O medo toma conta de todos. A dúvida invade o rosto do próprio Capitão Pátria.
Limites foram ultrapassados?
São segundos de tensão até que Todd, aquele homem pacato do primeiro episódio, “quebra o gelo” com um grito celebrando a morte brutal do opositor. O bastante para todos ao seu redor comemorarem. Um endosso que redimensiona o tabuleiro “The Boys”. Não é sobre a força do insano (e instável) homem superpoderoso. É sobre o poder daqueles indivíduos comuns em validarem tipos como esse. Em torná-los seus representantes. Em defender (e replicar) os distorcidos ideais dele. A ascensão de uma mentalidade perigosa que a série da Amazon escancara destemidamente enxergando o perigo escondido na fachada do cidadão de bem.
A quarta temporada de “The Boys” promete. E os primeiros episódios chegam nessa quinta-feira (13/06) no Prime Video.
E fiquem ligados! O criador da série Eric Kripke confirmou hoje que a quinta temporada será a última da série.
Que texto fantástico! O melhor que já li sobre a série